Bullying - O caso de Mohammed
O GATILHO : "TERRORISTA!"
Mohammed, 12 anos, vive com a mãe e com os irmãos numa das vilas mais abastadas nos arredores de Lisboa. Fala árabe e inglês, e nasceu no Dubai. Os pais instalaram-se há uns anos no país graças ao “golden visa”.
Mohammed não é representativo da média das crianças que acompanho. No entanto, quando a mãe me contactou pela primeira vez, ouvi uma angústia e uma impotência idênticas às de muitas outras mães, vivessem elas na quinta da Marinha, ou em Chelas[1]:
“Na escola, desde setembro, uns rapazes assediam o meu filho. O meu filho não entendia no início, depois irritou-se, mas os miúdos redobraram a intensidade dos insultos perseguindo-o, cercando-o no recreio e ameaçando-o…O meu filho chora todas as noites, e já não quer ir à escola”
Quais eram os gritos dos bulis?:
“Terrorista árabe, vai para tua terra! O que que tens na tua mochila, uma bomba? Psicopata! Não queremos aqui árabes! Morre! Vai para a prisão! “. Mohammed reagia indignado gritando que essa acusação era falsa, que eram mentiras, pedindo para calarem-se e para pararem.Em vão.
Por muito que as torres gémeas tivessem colapsado há mais de vinte anos, e que os jovens desta escola tivessem nascido uma década após esses acontecimentos, estes jovens estavam novamente a generalizar e a estereotipar, quase ao nível de um serviço de imigração nos Estados Unidos em 2001!
O ATAQUE VERBAL E A SUA ANALOGIA FÍSICA:
Uma dinâmica comum entre os bulis e o Mohammed parecia-se, portanto, com esta abaixo, onde Ⓜ️ é o Mohammed e 🅱️ é o buli.
🅱️. Afastem-se todos! Está a chegar o terrorista!
Ⓜ️. Porque me chamas de terrorista?!!!
🅱️. Então, é o que tu és! Olha te para um espelho, e vê o teu nome!
Ⓜ️. Mas eu não sou isso!
🅱️. És, és! Cuidado, ele está a enervar-se!
Ⓜ️. Para!!!!!
🅱️. O terrorista está irritado! Vai atacar! Vai atacar! Tem uma bomba, cuidado!
Ⓜ️. NÃO SOU UM TERRORISTA, PARA!!!!!
Este tipo de provocação, quando diária e premeditada, pode sem dúvida chamar-se de bullying. Em termos aikidocas físicos, este golpe verbal repetitivo lembra-me bastante o Shomen ushi:
A REAÇÃO DOS PAIS :
A mãe contactou os pais do menino que agredia verbalmente o Mohamed. O resultado foi frustrante. A outra mãe negou e ofendeu-se. Nada se obteve.
A mãe do M. decidiu então ir à escola falar com o diretor. Queixou se da escola não tomar medidas. A direção da escola nada fez.
E a agressão verbal dos colegas de turma do Mohammed intensificou-se. O Mohammed, absolutamente farto, deu um soco na cara do agressor verbal. A mãe voltou a contactar a escola alegando que apoiava a cem por cento o ato do seu filho, e o Mohammed foi expulso alguns dias.
Ao mesmo tempo que o rapaz tinha o suporte da sua mãe, o sentimento de injustiça era intenso. O rapaz chorava sem consolo não compreendendo porque foi ele o sancionado. O pai dele decidiu contactar um advogado e fazer queixa da escola.
A tentação dos pais intervirem junto da escola ou mesmo junto dos pais da outra criança buli é frequente. E a frustração que se segue a esta tentativa protetora é comum. Pois a queixa dos pais raramente erradica o problema de assédio.
É nesta fase, quando tudo foi tentado inclusive chamar-se a polícia ou acionar um advogado, que a situação do jovem pode piorar. Pois a queixa e a intervenção dos pais oficializam ao resto da turma uma imagem de vulnerabilidade do jovem que precisa de quem o defenda.
A DURA REGRA DA PROPORCIONALIDADE:
Começamos as sessões. Manifestei a minha compreensão da vontade do Mohammed de dar um soco na cara do seu agressor. Pois decidiu com coragem enfrentar aos seus agressores, e resolver a situação com as suas próprias mãos. A sua expulsão tinha um sabor amargo de injustiça, mas também representava o preço da sua tomada de controle.
A seguir refletimos também acerca da regra de proporcionalidade no método de defesa pessoal utilizado. O Mohammed de facto, estava a sofrer as consequências de ter reagido fisicamente a provocações verbais. E já bem jovem, estava a receber as consequências de uma regra social nem sempre fácil de entender, a da proporcionalidade. É de facto uma regra difícil de concretizar quando em algumas circunstâncias, uma palavra representa uma violência psicológica não menos forte que a de uma agressão física. A escalada verbal, e a sua repetição premeditada, provoca o contra-ataque físico, mais do que merecido na perspetiva de um jovem alvo de agressão verbal contínua. Como explicar aqui a tese da proporcionalidade a um jovem que sofre há meses e retalia uma unica vez?
Conversámos igualmente sobre a probabilidade, muito reduzida, de um estabelecimento escolar tomar medidas estruturais eficazes, ou dos bulis mudarem de atitude pela sua livre iniciativa.
INICIO DO TREINO :
Só nos restava, portanto, a opção de alterar a sua própria reação na próxima vez que se sentisse ofendido, e aprender a reagir sem submissão e sem contra-ataque. Perguntei-lhe :
“O que pensarias de uma reação verbal tão inusitada, tão original e elegante, que destabilizaria de tal forma o teu interlocutor, que aproveitarias para reequilibrares a situação entre vocês, desencorajando-o, de uma vez por todas, de enveredar por qualquer nova tentativa?”
O rapaz sorriu intrigado, pois embora orgulhoso de ter batido no seu buli, a expulsão foi o resultado. Algures senti também – embora o menino nunca o tivesse expressado assim - que o Mohammed gostaria que a mãe não interviesse mais daqui para frente, pois mesmo demonstrando assim o seu amor incondicional, de certa forma piorou-lhe a situação. O Mohammed queria ser autónomo, resolver isso sozinho, sem ter consequencias.
Quando eu propus ao Mohammed um método que neutralizava a agressividade, sem resultar em impactos negativos para ele e sem vencedor nem vencido, ficou entusiasmado. De facto, só a ideia de reequilibrar as posições, sem lesões e, portanto, sem consequências, entusiasmou bastante o Mohammed.
A esmagadora maioria das crianças não aprecia a violência, nem a submissão. O contra-ataque ou a fuga passiva, são os dois caminhos que o jovem usa por sobrevivência, sendo os únicos que conhece. Quando uma opção não violenta, no entanto eficaz lhe é proposta, fica frequentemente entusiasmado.
MOHAMMED ESCOLHE A ESTRATÉGIA AIKIDOCA:
Mohammed podia escolher dentre as 3 estratégias inspiradas no Aikido abaixo :
- 1ª estratégia: Queres interromper imediatamente o ataque do interlocutor, retomando o controle da situação e assustando o agressor (Atemi Verbal🤚) ? ( "ALTO AI!!!!!- avançando com força assim que o buli começa- INSULTAR-ME TODOS OS DIAS PELA MINHA ORIGEM É BULLYING!! -por forma a todos ouvirem- QUERES CONTINUAR A FAZER BULLYING OU MUDAS DE ATITUDE?!!! QUAL É A TUA RESPOSTA !)
- 2ª estratégia : Queres experimentar responder com humor, o que sopreenderá muito o buli? (Kotegaeshi verbal 🌊) ( TERRORISTA, É ISSO?...ENTÃO DIZ ME LÀ ..COMO ACHAS QUE UM TERRORISTA DEVE LIDAR COM UM BULI COMO TÚ?)
- 3ª estratégia: Queres desestabilizar para logo reequilibrar a relação (Harmonização-Irimi Verbal ∞) ? ( Esta foi a estratégia escolhida pelo Mohammed - Veja o exemplo abaixo )
Exemplificando cada uma das estratégias, o Mohammed riu-se ao ouvir a estratégia surpreendente da onda que aumenta e rebenta invertendo-se (kotegaeshi verbal) , mas achou mais apropriada nessa situação, a 3ª estratégia desafiante. ( A escolha deve ser sempre dada à criança pois ela é inteligente e intuitiva e sabe o que resultará melhor, e o que se sente mais capaz de fazer).
O AIKIDOCA MOHAMMED :
Após 3 sessões de 45 minutos cada, onde analisámos e exercitámos cada passo da técnica, repetindo uma e outra vez a postura e a técnica aplicadas a dezenas de ataques distintos e frequentes (críticas e ofensas relativos ao físico, à roupa, ao sotaque, à origem e nacionalidade, à família etc.), o Mohammed começou a reagir, cada vez mais rápido, com uma postura aikidoca e um conteúdo eficaz.
Alternadamente, atacámo-nos um ao outro, invertendo os papeis, até o Mohammed reagir não só tecnicamente de acordo com o ensinamento e com bastante naturalidade, como também adotando uma postura calma, não competitiva, e segura.
Deste treino surgiram então estas novas reações bem surpreendentes! ( 🅱️: Buli ; Ⓜ️: Mohammed)
🅱️. Afastem-se todos! Está a chegar o terrorista!
Ⓜ️. Que esquisito, como decidiste relacionar-me com um terrorista? Consegues explicar-me?
🅱️. …?? …És árabe e chamas-te Mohammed, por isso és um terrorista!
Ⓜ️. … humm… ok… se pensas mesmo isso, estás assustado?
🅱️. …??? o quê??!
Ⓜ️. Bem, é que se pensas isso de todos os árabes que têm o meu nome, suponho que és bem corajoso! Parabéns! Teres vindo falar-me foi um primeiro passo para abrir os teus horizontes?
🅱️. ……???
Ⓜ️. És bem-vindo à minha casa para um intercâmbio cultural. Sem bombas e com bolos, é quando quiseres! ∞
O Mohamed encontrou muitas outras perguntas que deixariam perplexo qualquer agressor . A partir desta estrutura, o rapaz, com o seu estilo pessoal e inteligência inegável, foi confiando cada vez mais em si. E nas sessões - como acontece frequentemente – riamos muito com as suas pérolas verbais.
O Aikido foi denominado pelo seu fundador, Morihei Ueshiba, de Arte Marcial da Paz, pois concebeu esta com o propósito de nos relacionarmos melhor internamente, com o outro, e com o universo.
De forma prática, isto concretiza-se no treino, alternando sucessivamente os papéis de atacante e atacado, de modo a disponibilizar ao nosso corpo, através do oponente, os estímulos necessários para aperfeiçoar a técnica, destreza e equilíbrio.
O leitor poderá achar que esse tipo de reação distanciada, centrada e imaginativa, é muito difícil surgir espontaneamente, face a uma situação agressiva repentina em casa, no trabalho ou na escola. Na verdade, assim como a prática física fortalece a mente, o espírito e o corpo, e este fortalecimento transforma-nos a tal ponto que a nossa autoestima aumenta, a criança com recursos e confiante emana uma energia que por si só afasta a agressão.
Os aikidocas (e os artistas marciais na sua maioria) são pessoas tranquilas, saudáveis, enraizadas, que caminham de forma segura, e que atraem pouco as pessoas tóxicas, dominadoras ou manipuladoras. Por esta mesma razão , as técnicas marciais interiorizadas ao longo dos anos tornam estas pessoas fortes e pacíficas. Que raramente atraem os ataques.
Um aikidoca sabe as técnicas e poderia magoar seriamente o outro. Mas decide não o fazer. A segurança de possuir esse recurso e a liberdade responsável de não o fazer são um pilar da filosofia desta arte marcial.
De igual forma acontece na arte marcial verbal, o MVA®. As figuras de estilo e perguntas eficazes que encontram no seio do ambiente protegido, ao movimentar a sua inteligência e criatividade, mostram o quanto são capazes. E afastam a agressão. Uma segurança e alegria são recuperadas pelo/a jovem e quando voltam à escola ou em contextos antes agressivos, desejam até serem abordados pelos que tentavam ofendê-los, para ter a oportunidade de pôr em prática o que sabem. E eis então que já não são atacados!
UM RECURSO PARA A VIDA:
Porque a liberdade de expressão sempre existirá, este jovem aprendeu também a ter a liberdade de se defender de forma aikidoca.
Após o filho retornar à escola, a mãe do Mohammed deixou-me um bonito testemunho: “O meu filho sofria de bullying e hoje tem confiança em si e sabe como desencorajar de imediato qualquer tentativa de ofensa, atraindo também novos amigos”.
O Mohamed conseguiu também, pouco depois, surpreender a sua irmã, que na altura gostava bastante de o tratar de “descerebrado”. Graças à sua postura segura e divertida, ganhou uma parceira de treino para a vida e ocasiões de praticar em casa não lhe faltaram! Aos poucos a relação fraternal também foi mudando para melhor, ou simplesmente, se equilibrando.
FIM
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